Mario Rita em exposição coletiva na galeria Bloco 103, Contemporary Art
Rua Rodrigo da Fonseca, 103B (frente ao hotel Ritz) - Lisboa
www.bloco103.com

A partir de 27 de Outubro de 2011

Mário Rita em exposição no Centro Cultural de Cascais
19 de Fevereiro - 3 de Abril
2011

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Habitar sem rede


A escala é um ponto de vista. Como bem percebeu Alice. Nos trabalhos da presente exposição do pintor Mário Rita, o habitual jogo geométrico e dimensional, bem conhecido nas suas obras, abre inúmeras portas novas. E não são apenas as telas de generosas, médias ou pequenas dimensões ou os desenhos de escala comedida e silenciosa, que dão o mote, que orientam a percepção. São, além disso, os planos de cor, a geometria gizada e escondida, as velaturas e as opacidades, o modo como a luz habita os espaços. Ou seja: é a pintura, no seu próprio e intrínseco exercício, que nos orienta o olhar e os passos.

Na sequência dos trabalhos que constituíram a série “Depois do Dilúvio”, estas perto de 30 pinturas lançam as pontes para mais um momento de “construção do caos”. A expressão é do autor, mas, do ponto de vista de quem observa, percebe-se que, da massa de luz original e branca, Mário Rita lança mão do gesto para a fragmentar e, com ela, construir as suas tentativas de razão.

Movendo-se no meio de um labirinto do qual procura sair no exercício da pintura, o pintor trabalha sem programa. Das formas nascem formas, como das cores surgem outras cores. Tendo sempre usado uma vasta gama cromática, de francos contrastes que se iluminam mutuamente, esta nova série apresenta contudo uma novidade: o roxo, cor raramente usada na obra do artista. Tendo embora já despontado, em apontamentos, em telas e desenhos anteriores, ainda a óleo, numa pele que, envelhecida abre sulcos, ela surge agora com uma pujança espacial nunca antes usada.

Em confronto, a opacidade de algumas outras cores, eventualmente mais silenciosas, não emudece a vibração lumínica, gerada no franco confronto de uma paleta aberta à complementaridade cromática. Roxos e lilases, verdes transparentes, laranjas intensos, vermelhos abertos, misturam-se em total equilíbrio com uma vasta gama de brancos e cinzas, de tons pálidos e surdos.

De resto, os meios são coerentes com o que há anos o autor vem fazendo. O gesto é, como sempre, espontâneo e forte. Percebe-se a matriz expressionista, mas também se continua a percepcionar a luz envolvente e benigna, servida por uma paleta simultaneamente atrevida e contida, como vimos. Testemunha-se a busca do equilíbrio, o exercício base da geometria, mas vê-se também como esta é sobretudo vivida como respiração, operando a criação de um espaço elástico, tanto na forma como na cor, tanto na tela como no seu exterior.

Os suportes seguem também os mesmos: tela e papel, à vez. Os materiais continuam a servir as buscas de texturas e transparências e opacidades. Acrílico para superfícies mais lisas e imediatas. Óleo, para que a pele da pintura lhe dê a dimensão lumínica mas também temporal, abrindo rugas, sulcando caminhos que revelam outras cores (um roxo que estala e faz descobrir um azul vibrante). Colagem, para que a variação da escala, da cor e da textura não seja linear. Carvão, para que a noite não seja apenas a dos pigmentos mais densos ou das camadas sucessivas da tinta, mas para que o gesto surja primeiro e último.

Os pressupostos são, por ventura, também constantes. Depois do caos, o cosmo. Depois do dilúvio, a ordem. A salvação, a medida. O barco ou a casa. Porém, neste caso, para Mário Rita, a figura humana, tema e medida frequente da sua obra, tornou-se ausente. E contudo essa ausência estende uma sombra na qual se ergue a casa. Vestígio, ela permanece na medida, na busca de um equilíbrio, de uma afirmação vital no meio do caos.

Por isso, é a escala o motivo maior destas linhas. Como fica claríssimo neste conjunto de obras, teatro em que a pintura é cenário mas também protagonista: mais do que um conjunto de regras, a escala é um dado central da percepção. Conferida pelo homem mas também pelo tempo e pelo que de simbólico investimos no mundo — ou pelo que de lúdico colocamos no mundo —, esta escala torna-se narrativa. Não porque evoque, certeira, qualquer estória e a ilustre, mas porque convoca a nossa imaginação para a habitar. Ou seja, cenográfica (outro modo de dizer arquitectónica), a pintura de Mário Rita despojou-se da medida — na não-inscrição momentânea da figura humana —, mas, ao fazê-lo, passou a convocar a nossa presença, como participantes, para a habitar.

Essa é, porventura, a grande novidade e a maior inquietação deste núcleo de trabalhos. A ausência do referente da figura humana nestas composições, o que nos confere, enquanto observadores, a responsabilidade desse papel, convidando-nos ao mergulho no mesmo abismo em que o próprio pintor se move.

A escala torna-nos, assim, portadores do desejo de adentrar a pintura e de a espreitar na sua construção, nos seus espaços mais íntimos. Vemo-la, por isso, nos seus mais ínfimos pormenores, já que nada nos distrai do essencial da sua razão plástica. A velatura toma, assim, um papel de neblina de memória, incendiando a nossa curiosidade sobre o que foi. As cores mais espessas, por vezes escondendo colagens, avolumando a composição com texturas e mistério, adensam essa urgência.

A nossa vontade de passear no imenso espaço compositivo é, como se percebe, habilmente conduzida pelo pintor. Seja na imensa dimensão das telas maiores, seja no plano mais claro das telas médias, ou no plano “portátil” dos desenhos.

Expliquemo-nos. As pinturas de grandes dimensões, de amplas manchas de cor que se estendem por dois ou mais metros de altura e largura, oferecem-se como elementos de entrada ao espaço antropofágico da pintura. Tal como Alice com o espelho, seduzidos pelo desconhecido, pelo que apenas se adivinha atrás de cada porta fechada, desejamos entrar nessas vastas geometrias, nessas espessas cortinas de cor, e percorrê-las por dentro para ver o que escondem. Em alguns casos, a generosa dimensão das obras permitir-nos-ia esse jogo, a entrada nessa casa em constante mutação, em perpétua possibilidade de conjugação. Uma conjugação que tanto se revelará na montagem da exposição, como integra a sua própria construção plástica, já que o autor explica que o jogo cromático do exercício da pintura, nessas telas de grandes dimensões, é tecido não através da adição de cores à mesma superfície, mas da aproximação ou afastamento de telas de outras cores e/ou tamanhos.

Esse confronto, que agiganta o espaço da pintura, que arranca os seus planos de cor e os transporta para uma terceira dimensão (como se se tratasse de paredes móveis), muda de perspectiva quando nos deparamos com as obras de tamanho médio. Como se o observador se distanciasse e passasse para uma média distância, em que os mesmos planos de cor, que experimentámos de perto e que nos envolveram, passassem agora a ser abarcados pela visão, de modo mais total.

O conjunto é, por fim, perceptível (com-preensível). Contudo, o mistério mantém-se. Trabalhadas sem plano prévio, estas pinturas oferecem-nos ainda o testemunho de uma geometria que vai sendo progressivamente apagada, que se torna vestigial, num processo de depuração que pode chegar ao silêncio mais total.

Aqui chegados, devemos deter-nos um instante. O médio plano é oferecido tanto sobre tela como sobre papel. Os media são os mesmos; acrílico, em grande medida, e também colagem. Mas, ainda, carvão. E, por vezes, óleo. O traço surge aqui porventura mais evidente. Como que abrindo caminho para um outro aspecto desta visão introspectiva: os desenhos.

Pequenos apontamentos em que quase só se opera a grafite, as nuances da cor são dadas apenas pela gradação dos cinzas, pela diferença do papel de suporte, dotando de maior ou menor calor a paleta grisalha, ou pela inclusão de colagem. Ao contrário do que poderíamos ser levados a pensar, pela sua escala de esquisso, pelo seu registo próximo do projecto, estes desejos não são anteriores ao trabalho das telas. Antes se constituem como momentos de diálogo, exercício de reflexão traçado no intervalo da pintura. Como um espelho ou um mapa interior que o pintor consulta, antes de prosseguir caminho. Ainda assim, apesar dessa intervenção de uma disciplina mais racional, o mundo sensorial da criação destas obras permanece misterioso. Nada nos é explicado. Nada nos é garantido. Apenas o que intuímos de início. Que a pintura é um enigma. Caixa de Pandora que tentamos abrir para satisfazer a nossa insaciável curiosidade. Caixa, casa, mundo, cada um de nós perde-se na luz e encontra-se como pode.

A escala é um ponto de vista. Como bem percebeu Alice. Como bem sabe Mário Rita. Seguimo-lo, curiosa e alegremente, sem rede.


Emília Ferreira


Almada, 5 de Fevereiro de 2011.